terça-feira, 29 de maio de 2012

O universo autoconsciente




O grande matemático e físico quântico Amit Goswami, que muito vem ao Brasil,  sustenta a tese de que o universo é autoconsciente (O universo autoconsciente, Record 2002). No ser humano ele conhece uma emergência singular, pela qual o próprio universo através de nós se vê a si mesmo, contempla sua majestática grandeza e chega a uma certa culminância.
Cabe ainda considerar que o cosmos está em gênese, se autoconstruindo e em expansão contínua. Cada ser mostra uma propensão inata a irromper, crescer e irradiar. O ser humano também. Apareceu no cenário quando 99,96% de tudo já estava pronto. Ele é expressão do impulso cósmico para formas mais complexas e altas de existência.
Alguns aventam a idéia: mas não seria tudo puro acaso? O acaso não pode ser excluído, como mostrou Jacques Monod no seu livro  O acaso e a necessidade, o que lhe valeu o prêmio Nobel em biologia. Mas ele não explica tudo. Bioquímicos comprovaram que para os aminoácidos e as duas mil enzimas subjacentes à vida pudessem se aproximar, constituir uma cadeia ordenada e formar uma célula viva seriam necessários trilhões e trilhões de anos. Portanto mais tempo do que o universo e a Terra possuem que é de 13,7 bilhões de anos.
Talvez o recurso ao acaso mostre apenas nossa incapacidade de entender ordens superiores e extremamente complexas como a consciência,  a inteligência, o afeto e o  amor. Neste sentido a visão de Pierre Teilhard de Chardin do universo que mais e mais se complexifica e assim permite a emergência da consciência e da percepção de um ponto Ómega da evolução na direção do qual estamos viajando, seja mais adequada para expressar a dinâmica mesma do universo.
Não seria melhor  calarmos reverentes e respeitosos diante do mistério da existência e do sentido do universo?
Depois destas reflexões já estamos habilitados a abordar a dimensão teológica do espírito como  Espírito Criador.


O Espírito Criador e a cosmogênese


Como não podia deixar de ser, Deus também é incluido na dimensão do espírito. E por excelência. Está presente na primeira página da Bíblia quando se narra a criação do céu e da terra. Diz-se que sobre o touwabohu, isto é, sobre o caos, melhor, sobre as águas primitivas “soprava um ruah (um vento, uma energia) impetuoso” (Gn 1,2). Daquele caos tirou todas as ordens: os seres inanimados, os animados e o ser humano. A este, tirado do pó como todos os demais, Deus “soprou-lhe nas narinas o ruah de vida, o espírito, e ele tornou-se um ser vivo”(Gn 2,7). É no capítulo 37 de Ezequiel que irrompe, de forma insuperavelmente plástica, a força vital do espírito. Quando este vem, os ossos ressequidos ganham carne e se transformam em vida.
Também as expressões mais altas do ser humano são atribuidos à presença do espírito nele, como a sabedoria e a fortaleza (Is 11,2), a riqueza de idéias (Jo 32,28), o senso artístico (Ex 28,3), o desejo ardente de ver Deus e o sentimento de culpa e a consequente penitência (Ex 35,21; Jr 51,1; Esd 1,1; Es 26,9; Sl 34,19; Ez 11,19; 18,31).


Deus “tem” espírito


Esta força criadora e vivificadora é eminentemente possuida por Deus. As Escrituras falam com frequência do espírito de Deus (ruah Elohim). Ele é dado a Sansão para ter força portentosa (Jz 14,6; 19,15), aos profestas para terem coragem de denunciar em nome dos pobres da Terra as injustiças que padecem, para enfrentar o rei, os poderosos e anunciar-lhes o juizo de Deus.
Especialmente no judaismo inter-testamentário se esperava para os fins dos tempos a efusão do espírito sobre toda a criatura (Jl 2,28-32; At 2, 17-21). O Messias será “forte no espírito” e virá dotado de todos os dons do espírito (Is 11,1ss).
É neste contexto do judaismo tardio que surge a tendência de personificar o espírito. Ele continua sendo uma qualidade da natureza, do ser humano e de Deus. Mas sua ação na história é tão densa que começa a ganhar autonomia. Assim se diz, por exemplo, que “o espírito exorta, se aflige, grita, se alegra, consola, respousa sobre alguém, purifica, santifica e enche o unverso”. Jamais se pensa nele como criatura, mas algo do mundo de Deus que, quando se manifesta na vida e na história, tudo transforma.


O Espírito é Deus


A compreensão começou a mudar quando se cunhou uma expressão decisivia:”espírito de santidade” ou “espírito santo”. Esta formulação guarda certa ambiguidade, pois pode-se dizer espírito santo para se evitar dizer o nome de Deus (coisa que  os judeus até hoje, por respeito, evitam) como pode-se significar o próprio Deus. “Santo” para a mentalidade hebraica, é o nome por excelência de Deus o que equivale dizer na compreensão grega Deus como  transcendente, distinto de todo e qualquer ser da criação.
Em resumo podemos afirmar: pela palavra espírito (ruah) aplicado a Deus (Deus “tem” espírito, Deus envia o seu espírito, o espírito de Deus) os judeus expressavam a seguinte experiência: Deus não está atado a nada; irrompe onde quer; confunde planos humanos; mostra uma força à qual ninguém pode resistir; revela uma sabedoria que torna estultície todo o nosso saber. Assim Deus se mostrou aos líderes políticos, aos profetas, aos sábios, ao povo, especialmente, em momentos de crise nacional (Jz 6,33; 11, 29; 1 Sam 11,6).
Assim como é dado ao rei para que governe com sabedoria e prudência, no caso o rei Davi (1 Sam 16,13) será dado também ao servo sofredor, destituido de toda pompa e grandiloquência (Is 42,1) Em Is 61,1 se diz explicitamente:”o espírito de Javé está sobre mim porque Javé me ungiu… para anunciar a libertação dos cativos e a boa-nova para os pobres”, texto que Jesus aplicará a si na sua primeira aparição na sinagoga de Nazaré (Lc 4, 17-21). Por fim, o espírito de Deus não sinaliza apenas sua ação inovadora no mundo, mas aponta para o próprio ser de Deus. O espírito é Deus. E Deus é  Espírito. Como Deus é santo, o Espírito será  o Espírito Santo.
O Espírito Santo penetra tudo, abarca tudo, está para além de qualquer limitação. “Para onde irei para estar longe de teu Espírito? Aonde fugirei para estar longe de tua face? Se eu escalar os céus, ai estás, se me colocar no abismo, também ai estás”(Sl 139,7) Até o mal não está fora de seu alcance. Tudo o que tem a ver com mutação, ruptura, vida e novidade tem a ver com o espírito. O Espírito Santo está tão unido à história que ela de profana se transforma em história santa e sagrada.


O Espírito num mundo sem espírito e em degradação


Hoje sentimos a urgência da irrupção do Espírito Santo como na primeira manhã da criação.  A Carta da Terra, face à crise mundial ecológica, com energias negativas que nos podem arrastar ao abismo, afirma:”Como nunca antes da história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal…Temos ainda muito que aprender  a partir da busca conjunta por verdade e sabedoria (final).
Cabe ao Espírito iluminar nossa mente e transformar nosso coração. Se fizermos esta conversão dificilmente escaparemos das ameaças que pesam sobre o sistema-vida e sistema-Terra. Cabe ao Espírito a capaciadade de transformar o caos destrutivo em caos criativo, como operou no primeiro momento do big bang. Ele pode transformar a tragédia possível numa crise acrisoladora que nos permite dar um salto de qualidade rumo a uma nova ordem, mais alta, mais humana, mas cordial, mais amorosa e mais espiritual. O universo, a Terra e cada um de nós somos templos do Espírito. Ele não permitirá que seja desmantelado e destruido.
Importa suplicar ao Espírito: Vem, Espírito Criador! Renove a face da Terra, aqueça nossos corações e rasgue um horizonte de sentido e de esperança para a nossa realidade humana desumanizada.


Leonardo Boff é coteólogo, um dos redatores da Carta da Terra e escritor.

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