sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Greve da PM: Pinheirinho na Bahia, não!


Por Emiliano José*

Tenho dito, insistido que segurança pública é um problema gravíssimo. Em todo o País. Não basta esgrimir números ou fazer comparações sobre quem remunera mais ou menos. É necessário reconhecer a necessidade de uma nova formulação sobre a segurança pública como direito do cidadão, ou, ao menos, uma atualização da política, já que, de fato, existem algumas iniciativas positivas – o Pronasci, uma delas, onde aparecem pistas inovadoras, um pensamento abrangente sobre a questão. Não dá para discutirmos o problema a cada greve de policiais militares e acreditarmos que a questão se situe tão somente na remuneração de soldados, sargentos e oficiais. E ultimamente a gritaria em torno da PEC 300 revela que há um tom monotemático em relação ao assunto.

Herança Maldita
"A mortandade de jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades especialmente indica uma herança maldita advinda da mentalidade adquirida desde a ditadura e, também, dos nossos séculos de escravidão"
Enfrentamos uma questão mais de fundo. A mortandade de jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades especialmente indica uma herança maldita advinda da mentalidade adquirida desde a ditadura e, também, dos nossos séculos de escravidão. Negros, pobres e jovens são em princípio suspeitos, lamentavelmente. Ao falar isso, não se desconhece que o Estado de Direito reclama a existência da polícia. A sociedade, para ver exercer-se o seu direito à segurança, necessita da polícia. Não podemos esquecer esta obviedade.

A polícia, no entanto, deve ser preparada para proteger o cidadão, e não para simplesmente reprimi-lo, e especialmente reprimir pobres e negros. Creio que já há discussão sobre isso nas polícias, tanto Civil quanto Militar, mas não há ainda uma compreensão disseminada a esse respeito. Tenho que dizer que no contato com vários oficiais e soldados e sargentos localizo tais preocupações, reflexões sobre direitos humanos, uma outra visão do que seja o papel da polícia, já não mais circunscrita à ideia pura e simples da repressão.

Civil e Militar

A existência de duas estruturas policiais – civil e militar – também não tem sido devidamente enfrentada, discutida, e creio que devamos fazer isso com urgência. Como, também, não foi, ainda, problematizada de modo suficiente os mecanismos legais que assegurem aos policiais o direito de colocar à mesa suas reivindicações, já que me parece óbvio que pessoas armadas pelo Estado não tenham o direito de fazer greve, pelos riscos que comporta, já bastante conhecidos por nós. E afinal a impossibilidade da greve já foi consagrada pelos constituintes de 1988, corretamente.

A reivindicação de melhores salários por parte das corporações militares e civis tem o lado positivo de provocar todos nós para a elaboração de uma política que se volte especialmente à garantia do direito à segurança que tem todo cidadão, para além da justeza da reclamação de melhor remuneração. É reducionista, pobre uma visão puramente economicista, corporativista sobre o problema.

Armados pelo Estado

Discuti o tema, no Parlamento e fora dele, quando da greve recente da Polícia Militar da Bahia, que começou dia 31 de janeiro deste ano de 2012. Claro que o fiz sob o calor dos acontecimentos, de uma paralisação que durou mais de dez dias, com o sacrifício evidente dos direitos da cidadania à segurança. Lembrei que paralisações dessa natureza, de homens e mulheres armados pelo Estado, nunca produzem coisas boas no seu decorrer. Causam um prejuízo enorme à população. Não podem ser admitidas.

"Essas movimentações redundam em derramamento de sangue inocente, em morte das pessoas desamparadas pela ausência da polícia nas ruas"

Para além de quaisquer outras consequências, movimentos como esses sempre provocam, como ocorreu no caso da Bahia, um crescimento exponencial de homicídios. Essas movimentações redundam em derramamento de sangue inocente, em morte das pessoas desamparadas pela ausência da polícia nas ruas, e os que se movimentam sabem que esta é a principal consequência, e por isso mesmo, a Constituição proibiu a greve nessa área. De modo a proteger a cidadania.

Greve de 1981

Em 1981, uma movimentação dessa natureza provocou derramamento de sangue. O governador de então, Antonio Carlos Magalhães, ordenou que fosse debelada a ferro e a fogo e militares foram mortos por militares na repressão à tentativa de paralisação. Vivíamos sob uma ditadura e o governador de então, qualquer que fosse, como sabemos, não era mais que um delegado do general que estivesse na presidência. ACM ordenou a repressão com toda ferocidade e foi o que se viu.

Quem quiser saber mais sobre aquela movimentação leia o livro do professor e ex-oficial da PM, Georgeocohama, que tive a honra de prefaciar: “A massa da tropa – greve na Polícia Militar da Bahia – 1981”. Ao lembrar os dramáticos momentos de 1981, o faço para reiterar que nenhuma movimentação dessa natureza traz bons resultados e o faço também para refrescar a memória dos que, no Congresso, inclusive familiares do ex-governador Antonio Carlos Magalhães, pretendiam explorar a paralisação recente ocorrida na Bahia. E o faziam de forma demagógica, irresponsável.

Em 2001, ainda na Bahia, houve outra paralisação de policiais militares e ela foi resolvida não só pelo governador de então, mas devido à firme e ponderada intervenção de parlamentares do PT, que se empenharam em negociações que pusessem fim à greve. E aqueles dias foram, também, de muito prejuízo e violência para a população.

Político-ideológica

Houve uma claríssima luta político-ideológica no decorrer da greve atual e, também, depois dela. Como é natural, creio. É a disputa por hegemonia. As tentativas de se explorar acontecimentos, de fazer a leitura deles de acordo com os interesses de cada corrente política ou mesmo da mídia, que não deixa de ser uma corrente política.
"O deflagrar da greve foi seguido de atentados à segurança pública por parte de alguns policiais militares (...) com passageiros sendo retirados de ônibus 'manu militar', ataques a tiros de agências bancárias, militares mascarados nas ruas dando tiros para cima, um terrorismo policial inadmissível"

O governador Jaques Wagner, que vem de tantas lutas sindicais, não se abalou diante da crise. Soube enfrentá-la, como cabe a um governante. E dispôs-se, desde o primeiro momento, a fazê-lo nos marcos da vida democrática, de acordo com as regras do Estado de Direito, sem, no entanto, permitir que se perdesse a sua autoridade sobre o processo, autoridade legitimada pelo voto.

Tomou a providência de pedir ajuda ao governo federal de modo a garantir, de todos os modos possíveis, o direito à segurança que tem todo cidadão, embora tivesse consciência de que não podia satisfazer esse direito integralmente com a greve dos policiais. Os policiais amotinados na Assembleia Legislativa foram cercados por forças federais, depois de pedido feito pelo presidente da Casa, Marcelo Nilo, de que se desocupasse a sede do poder. Com a ponderação permanente do governador de que a desocupação fosse feita de modo firme, evitando-se, no entanto, de todas as maneiras, qualquer confronto armado que pudesse implicar em derramamento de sangue, como ocorrera em 1981. E isso foi cumprido de modo rigoroso até que os amotinados se entregassem.

Atentados

O deflagrar da greve foi seguido de atentados à segurança pública por parte de alguns policiais militares, com o bloqueio de avenidas, atravessamento de ônibus, com passageiros sendo retirados 'manu militar', ataques a tiros de agências bancárias, militares mascarados nas ruas dando tiros para cima, um terrorismo policial inadmissível a confirmar o quanto é perigosa uma greve de homens armados pelo Estado. Se há policiais com espírito público, e são a maioria, há os que não têm compromisso com o povo.

As ações criminosas de alguns poucos policiais foi devidamente desmascarada por uma reportagem jornalística, que deu conta do que pretendiam, com a proposta de atentados contra a segurança da cidadania. Com estes, o governador disse sempre, não compactuava, não podia compactuar, e o fazia em nome do Estado de Direito, da democracia. E hoje alguns deles estão presos e responderão na Justiça por crimes que tenham cometido.

Negociações

As demais associações de policiais militares, e eram mais três além daquela que havia tomado a Assembleia, foram chamadas à mesa de negociação, mesa que contou com a mediação do arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, dom Murilo Krieger, em cuja residência realizaram-se a maioria das demoradas reuniões. A associação dos amotinados da Assembleia obviamente não participou das reuniões. Escolhera desde o início o caminho do confronto armado, tendo inclusive sequestrado várias viaturas.

O governador, esticando a corda das possibilidades orçamentárias do Estado, no final do processo, admitiu pagar as gratificações pedidas pelos policiais militares – as chamadas GAP IV e GAP V – num processo que deve se estender até 2015. Com a desocupação da Assembleia, a desmoralização dos que pretendiam impor o terror à população, e com a negociação finalizada, encerrou-se também a greve, às portas do carnaval da Bahia. Carnaval que, aliás, pretendeu ser transformado em moeda de troca dos amotinados da Assembleia. "Creio que o Carnaval, no entanto, foi essencial para o fim da greve, ao contrário do que imaginou uma parte dos grevistas. A população, se já estava desgastada pela falta de segurança, pelo aumento do número de homicídios, pela revelação dos métodos assustadores e violentos de algumas das lideranças do movimento"

Creio que o Carnaval, no entanto, foi essencial para o fim da greve, ao contrário do que imaginou uma parte dos grevistas. A população, se já estava desgastada pela falta de segurança, pelo aumento do número de homicídios, pela revelação dos métodos assustadores e violentos de algumas das lideranças do movimento, ficou ainda mais irritada pela ameaça de não fruir com tranquilidade os seus tradicionais dias de alegria. Nesse momento, creio, o desgaste do movimento chegou ao seu auge e, penso, deve ter contado muito para o encerramento da paralisação, para além do fato de o governo ter atendido grande parte das reivindicações apresentadas.

Bahia-Rio

A resolução democrática e firme, serena e segura da greve, devido, sobretudo, à orientação que o governador Wagner deu para o enfrentamento da crise, contribuiu para que o Rio de Janeiro enfrentasse positivamente o movimento que se ensaiou entre policiais e bombeiros. Quando o movimento do Rio foi anunciado, a movimentação da Bahia já estava no fim. A lembrar que entre os telefonemas trocados por ocupantes da Assembleia Legislativa e uma liderança parlamentar do Rio de Janeiro incluía-se a necessidade de prolongar a greve na Bahia para que coincidisse com a daquele Estado, de modo a complicar os carnavais dos dois Estados. Creio que parte dos erros dos dois movimentos teve a ver com a tentativa de frustrar a alegria do povo com a supressão do carnaval.

Nas tentativas midiáticas de disputa ideológica, houve a tentativa de desgastar o governador Jaques Wagner, como se não tivesse sabido enfrentar a greve. Como já se disse, em nenhum momento o governador procurou atalhos. Defendeu a população ao conseguir a presença de forças federais no Estado, negociou as reivindicações dos policiais militares à exaustão e atendeu a maior parte delas. Não compactuou com os que adotavam métodos que fugiam à legalidade. Não admitiu violência contra os amotinados, mesmo à vista de ordem judicial. Os que tiverem de ser punidos, se tiverem, o serão de acordo com a Justiça.

Pinheirinho

Havia, é claro, e isso no campo estrito da política, quem torcesse para um desfecho à Pinheirinho. À boca pequena, que ninguém é louco de dizer isso abertamente, os oposicionistas diziam, o DEM à frente, que a Bahia seria o Pinheirinho do PT. Imaginavam que uma invasão desastrada das forças federais à Assembleia Legislativa provocaria derramamento de sangue e aí o espetáculo estava pronto. Um desfecho como o de 1981 ou como o de Pinheirinho. Não, nem um, nem outro.

A solução seguiu o roteiro desde o início traçado pelo governador, que saiu com sua autoridade preservada, fortalecida. Wagner sempre dizia que não transigiria com princípios, que não cederia a métodos de policiais que não respeitavam a população, que iria garantir os direitos da cidadania à segurança, e que respeitou ontem e respeita hoje o direito de reivindicar de quaisquer categorias, mas sempre nos marcos constitucionais. Pinheirinho na Bahia, não. Não aconteceu e não acontecerá.

Marcos da Democracia

Dizer que uma greve armada é positiva, não é. Diante da que ocorreu na Bahia, pode-se afirmar, no entanto, sem que se desconheça os óbvios prejuízos à população, que a solução dela se deu nos marcos da democracia, o que, nesse sentido, não deixa de ser positivo. O governador da Bahia frustrou os catastrofistas de plantão e mostrou que a democracia pode ser simultaneamente firme e serena. Pode ser dura, sem perder a ternura, para recuperar a palavra de ordem de Guevara.

Como disse no início desse texto, essas movimentações reclamam, simultaneamente à discussão sobre a questão salarial, um tratamento mais de fundo sobre a segurança pública, que leve em conta, sobretudo, o sagrado direito da cidadania à segurança. Esse direito não pode ser desrespeitado, sob nenhum argumento. Esse o alerta que essas paralisações nos deixam. Um alerta urgente. Acendeu-se o sinal vermelho.
*Emiliano José é jornalista, escritor e deputado federal (PT/BA).Texto publicado orginalmente no site da revista Caros Amigos.

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